Conto sobre os sentimentos dos animais, maus tratos, abandono, etc.
Caso alguma associação protetora dos animais se interesse, eu libero para publicação.
E-book em formato digital em
http://issuu.com/marcelobancalero/docs/mem__rias_de_uma_cadelinha_abandona
Memórias de Liza, uma cadelinha abandonada
Introdução
Meu nome hoje é Liza, mas esse é o último nome que recebi em minha vida. Como vocês poderão notar no desenrolar de minhas memórias, eu tive vários donos e vários nomes.
Sou uma cadela vira-lata de porte médio, cor predominante preta, com alguns detalhes em branco. Tenho hoje 56 anos na idade dos cachorros. O que dá 08 anos na idade dos seres humanos.
Resolvi escrever minhas memórias, como uma forma de mostrar um pouco aos seres humanos que nós os cachorros, assim como todos os animais, temos sentimentos. E assim conscientizá-los sobre questões como maus tratos, violência, abandono etc.
Capítulo 1
Meu nascimento, minha família e uma tragédia.
Sou filha de uma cachorra, vira-lata de cor preta completa, que era acompanhante de um homem, morador de rua. Meu pai não sei quem era. Sabe como é né... Mamãe era cachorra de rua. Dormia e vivia na rua, e em tempo em que ficava no cio, era um Deus nos acuda. Eu fui um dos filhotes da sua 10ª gravidez. Devo ter dezenas de irmãos espalhados por ai.
Meus sofrimentos começaram logo que nasci. Minha mãe e meus irmãos que nasceram comigo, ao todo seis, morreram dias depois do nosso nascimento. Morreram junto com nosso dono. Ele, como eu disse, era morador de rua, e bebia para esquecer os problemas da vida e se aquecer nas noites frias. Certa noite estávamos todos deitados junto dele, acomodados num pedaço de papelão, e uma coberta velha de algodão. Quando de repente se aproximaram uns jovens rindo alto e vinham chutando sacos de lixo que se encontravam nas ruas. Ao se aproximarem de nós, um deles falou;
_Olha só esse bebum sujo, deixando nossa cidade feia.
Outro disse;
_Vagabundo! Suma daqui!
E chutou nosso dono, que não reclamou, nem se defendeu.
Mas mamãe não! Mamãe avançou para cima dos jovens, rosnando, latindo e mostrando seus dentes afiados.
Os meninos correram. Então voltamos a nos acomodar em nossa cama de rua, e adormecemos.
O que aconteceu depois, foi muito rápido, eu me lembro apenas de alguns detalhes. Só não esqueço da voz daquele jovem quando disse;
_Manda sua cachorra morder agora seu bêbado vagabundo!
Senti então aquele cheiro forte de gasolina. O menino havia jogado o liquido em toda nossa cama. Nosso dono, minha mãe e meus irmãos estavam todos ensopados. Eu só não fui atingida, pois dormindo havia rolado para os pés da cama. Então o rapaz acendeu um fósforo e jogou em cima de nós. Um fogo enorme começou. Corri como louca pára escapar. Um dos meninos correu atrás de mim e me pegou pelo rabo. Caminhava em direção ao fogo, onde pude ainda ver aquela cena horrível, com meu dono, mamãe e meus irmãos se debatendo no meio das chamas. Quando ele ia me atirando no meio do fogareiro, uma sirene da policia o assustou e ele me largou e saiu correndo.
Tentaram apagar o fogo, mas era tarde... Tarde demais para todos. A policia me encaminhou para a Zoonoses da cidade. Nunca soube se prenderam aqueles selvagens que mataram minha família.
Capítulo 2
À procura de um dono
O Centro de Zoonoses tinha um local, onde ficavam os cachorros e gatos abandonados que eram encontrados na cidade. Tinha de tudo lá. Cães velhos, doentes, filhotes, cachorras prenhas, gatos nas mesmas condições. Quem tinha sorte podia ser adotado, mas essa sorte não chegava aos idosos e doentes, que acabavam sendo sacrificados.
Fiquei na Zoonoses uns 6 meses. Um dia, a cidade resolveu diminuir a quantidade de internos, criando uma campanha de adoção de animais. Ainda me lembro daquele dia. Nós nunca recebíamos carinho, nenhum contato humano a não ser quando o veterinário vinha fazer uma inspeção pra avaliar a saúde dos animais. Às vezes ele trazia auxiliares que demonstravam algum sentimento com a gente. Naquele dia da campanha de adoção, eu e os filhotes éramos os mais propícios a sermos adotados. Então nos deram banho, escovaram nossos pelos. E nos levaram a uma grande praça na cidade, onde dentro de uma enorme tenda ficamos expostos para a população. Muita gente chegava dizendo.
_Olha que gracinha!
Crianças dizendo;
_Mãe eu quero esse! Leva! Leva!
Fiquei ansiosa para ir com uma daquelas crianças...
Mas infelizmente, um homem, de rosto sisudo que dava até medo, me escolheu antes. Pensei, quem sabe está me levando para seu filho ou filha... Mas não. Era para ele mesmo. E o homem de cara brava era solteiro.
Chegando em sua casa amarrou uma corda em meu pescoço. Uma corda mesmo, não uma coleira. A corda apertava minha garganta ainda pequena, eu tinha menos de um ano de vida, era mansa. Não tinha por que me prender daquele jeito.
O homem me chamava pelo nome de Pintada, por causa de eu ser preta e ter algumas manchas brancas em meus pelos, sendo uma destas bem na minha testa.
Os primeiros dias foram até normais. Eu passava a maior parte deles sozinha. O homem saia cedo para trabalhar, e voltava tarde da noite. Muitas vezes esquecia de deixar água e comida. Acostumei-me a esperar. Eu tentava chamar sua atenção latindo, tentava brincar. Um dia inventei de pular em suas pernas para brincar com ele, ver se ganhava um pouco de atenção. E ganhei a atenção. Que veio em forma de um chute na minha barriga que me jogou longe. Enquanto o ser desprezível de rosto sisudo dizia;
_Não arrumei cachorro pra brincadeiras! E sim pra guardar a casa! Trate de virar um cão bravo, ou te jogo na rua sua peste!
Virar um cão bravo? Mas por quê? Eu não queria ser uma cadela brava! Eu queria só carinhos, alguém pra coçar minha barriga... Enfim, eu queria uma família. E não um emprego!
Passei os demais dias planejando minha fuga daquele lugar horrível. Foi então que percebi que eu era um cachorro e aquela corda poderia ser destroçada facilmente por meus dentes afiados. Foi como pensei... Em minutos roí a corda e me soltei. Acabei bem na hora que o grandalhão de mau humor chegou. Assim que ele abriu o portão, eu corri e passei bem, no meio de suas pernas. Ouvi ao longe o homem me xingando de vários nomes feios que não vou colocar aqui em respeito ao caro leitor. O importante é que eu estava livre! Bom, eu tinha ainda um pedaço de corda amarrada no meu pescoço. Mas era livre pra ir bem longe daquele lugar.
Eu tinha que encontrar uma família, um dono pra cuidar de mim. Mas precisava também de água e comida. E confesso, eu nunca tive de procurar essas coisas. Sempre tinha alguém que cuidava disso.
Era estranho andar livre nas ruas. Dava um pouco de medo quando alguns cachorros chegavam latindo e depois de me cheirar se afastavam. Nem os bonitinhos me davam muita bola. Acho que era por que fui castrada na Zoonoses e não ficava no cio nem podia engravidar. Isso era bom de um lado, pois se evitava ficar grávida, mas também afastava bons partidos de namoro. Mas como a prioridade era outra, isso não me entristecia muito. Eu queria era o carinho de um dono.
Continuando minha história. Eu ia pelo caminho procurando ainda o que comer, quando um homem, que estava na porta de um bar, se ao me ver, se agachou e me livrou daquela corda que apertava ainda meu pescoço. Ele estava comendo um salgado Fiz a melhor cara de piedade, fome e de bicho carente que eu podia fazer... Ele jogou-me então o salgado, que comi tão rápido que não lembro se era de carne ou frango o recheio. Fiz festa para o homem, lati, pulei em suas pernas, ele me fez carinho na cabeça, brincou comigo. Eu estava tão feliz, tão feliz... Afinal, era o primeiro contato humano de verdade que eu recebia. Não como do médico com suas auxiliares, nem como do brucutu que me adotou... Mas era um contato de verdade. Como eu sempre havia sonhado. Pensei comigo que havia encontrado meu dono. Mas logo descobri que não. O homem bondoso pagou o dono do bar e entrou num carro. Eu corri e tentei entrar também, mas ele fechou a porta antes. Ligou e saiu pela rua indo embora. Eu corri, corri como louca atrás daquele carro, no meio do trânsito, no meio de carros em alta velocidade que buzinavam e seus motoristas gritavam como doidos;
_Sai da rua vira-lata!
Por fim, perdi o carro daquele bom homem de vista e desisti da busca. Voltei a caminhar pelas ruas da cidade, precisava encontrar um lugar para ficar, logo ia escurecer.
Encontrei alguns cachorros perto de um casal de moradores de rua, mas as lembranças de minha família queimada naquela fatídica noite me fizeram ir procurar outro lugar. Dormi aquela noite debaixo de um banco do ponto de ônibus de frente a uma padaria 24 horas. O movimento ali, me dava segurança e acalmava meus medos. Enquanto o sono não vinha eu ficava olhando as pessoas que entravam e saiam do lugar. Pensava nas famílias a que pertenciam, se tinha algum bichinho de estimação. Quem sabe, alguma daquelas pessoas pudessem ser bons donos para mim.
O dia clareou. Eu havia dormido à prestação, mas estava com as forças renovadas, embora com muita fome. Matei a sede bebendo um pouco de água numa poça na calçada e segui adiante em minha missão. O centro da cidade não parecia ser um lugar bom para encontrar um dono, então segui para os bairros da periferia. Passando perto de uma casa de quintal enorme, vi que o portão estava aberto. Curiosa, resolvi entrar. De repente aquele cachorro veio latindo e rosnando atrás de mim. Era um Pitbul bravo enorme. O cão vinha babando, nos olhos avermelhados eu podia ver a raiva que ele estava sentindo por eu ter invadido sua casa.
Corri feito louca. Ele estava quase me alcançando. Se me pega me mata! Pensei. Foi então que uma senhora vendo minha situação abriu o portão de sua casa e me chamou;
Vem pra cá cachorrinha!
Não pensei duas vezes... Entrei feito um foguete passando pelo meio das pernas da velhinha que correu fechar o portão. O malvado Pitbul ficou latindo como doido lá fora, enquanto minha heroína me afagava a cabeça enquanto carregava-me para dentro da casa. Já acomodada, num cantinho da sua cozinha, ela me deu água fresca, e um pratinho com uma comida deliciosa. Nossa como eu estava com fome! Comi e logo dormi de tão cansada que estava.
Capitulo 3
Conhecendo os novos donos
Quando acordei na casa da boa senhora que me havia salvado a vida, a casa estava cheia de gente. E estavam falando sobre mim.
Um homem magro, alto de rosto fino dizia;
_Mas mamãe, a senhora está velha e cansada. Cheia de doenças, precisa se cuidar, tomar um monte de remédios. Não dá pra cuidar de cachorro.
_Não se preocupe meu filho. Eu dou conta.
Dizendo isso, chamou um menino, era seu neto.
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_Venha conhecer a Pretinha, Gustavo. Olha como ela é bonitinha.
O neto da senhora tinha oito anos. Chegou perto, me fez um carinho na cabeça. Nisso, sua mãe gritou da sala. Pode lavar bem essa mão depois menino! Vai saber onde andou essa vira-la.
_Amanhã vou dar banho na Pretinha. Disse a boa velhinha. Dona Cida era seu nome.
Eu estava feliz. Apesar das reações do filho e da nora de dona Cida, parecia que eu havia enfim encontrado um lar. Bom aquilo já era melhor que o perigo das ruas, ou a solidão da Zoonoses. No dia seguinte, dona Cida me deu um bom banho. Eu nunca gostei muito de banho, mas bem que eu estava precisando. De tarde a perua escolar trouxe seu neto que ficava com ela, até seus pais chegarem do trabalho, quando vinham buscá-lo. Ela nos dava o almoço, e depois de tomar seus remédios deitava-se para dormir. Foi então que descobri que crianças podem ser mais perigosas do que as ruas. Gustavo fazia cada coisa comigo... Uma vez me colocou dentro da gaveta do guarda-roupa e fechou as portas. Quase morri sufocada no meio daquelas roupas. Em outro dia inventou que ia me mandar de presente para um amigo no Japão. E para isso me colocou dentro de uma caixa de papelão, fechou com fita adesiva e escreveu “Made in Japão” na tampa. Pior... Isso foi perto da hora de seus pais o buscarem. Acreditam que ele me deixou lá? Sim! Presa, quase sem ar... Largou a caixa fechada comigo dentro perto da caixa do correio no portão. Eu escutava Dona Cida me chamando da sala. Mas meus latidos abafados pela caixa lacrada de fitas, não eram suficientes para que a velhinha me escutasse.
_Pretinha cadê você?
_Venha cá meu amorzinho...
_Onde anda essa cadelinha? Será que o Gustavo deixou o portão aberto e ela fugiu?
Foi então que Dona Cida veio até o portão verificar se estava aberto. Ao perceber sua presença. Me debati dentro da caixa. Quase matei a velhinha de susto, mas deu certo. Dona Cida me libertou e retribui com muitas lambidas em seu rosto assim que me vi solta do cárcere. No dia seguinte ela deu uma bronca no neto.
Tive outras aventuras com o Gustavo, mas apesar de tudo, só de fazer parte de uma família, valia à pena o sacrifício.
Capítulo 4
Mais uma tragédia e o retorno à Zoonoses
Fiquei na casa de Dona Cida por dois anos, eu já estava com 21 anos na idade dos cachorros, 3 na idade dos seres humanos. Mas num fatídico dia, quando acordei, esperei dona Cida levantar, pois ela abria a porta para que eu fosse ao quintal fazer minhas necessidades. As horas passavam, e nada da velhinha levantar. Fui até o quarto, subi na cama, ela estava ainda deitada. Voltei para cozinha, eu estava apertada, mas não ia fazer xixi na cozinha. Voltei ao quarto e lati perto da cama de Dona Cida. Lati várias vezes e nada. Até que desisti. Não agüentei e fiz meu xixi num cantinho da cozinha mesmo, dona Cida que me desculpa-se , mas não deu para agüentar. À tarde, a perua da escola chegou. Gustavo entrou pelo portão, mas as portas da casa ainda estavam trancadas por dentro e ele não tinha a chave. Chamou, tocou a campainha e nada de dona Cida acordar. Nesse ponto eu já estava começando a entender o que havia acontecido. A velhinha era muito doente, tomava diversos remédios todos os dias. Passado algum tempo o menino voltou com seu pai. Este chamou algumas vezes, e logo arrombou a porta. Ele correu para o quarto com o filho ao lado. Gritando;
_Mamãe! Mamãe!
Mas infelizmente dona Cida havia partido.
Sem dona Cida, o casal tomou duas providências...
O menino saia da escola e ia para um curso extracurricular na parte da tarde...
E eu...
Bom, eu fui enviada para a Zoonoses novamente.
Capítulo 6
A Fuga
Eu havia experimentado uma vida familiar. Não conseguia mais aceitar aquela vida de abandono e solidão da Zoonoses. Tinha que dar um jeito de fugir daquele lugar. Tracei um plano infalível. Foi num domingo, em que havia apenas um empregado no local, que vinha fazer uma inspeção no lugar. Quando o homem chegou perto do portão onde eu ficava junto com outros três cachorros, me fingi de morta. Deitei numa posição toda torta para que chamasse a atenção dele. E deu certo. O homem ao chegar e me ver naquela situação estranha, com uma perna torta para um lado, a outra para o outro lado, a cabeça jogada para trás, em cima do pote de água com uma das orelhas mergulhada dentro... O sujeito correu abrir a porta do lugar e se aproximou. Nisso, eu disparei por entre suas pernas e corri feito doida...
Sucesso completo minha fuga. Duas outras cadelas que estavam no mesmo local que eu, aproveitaram e fugiram também, o que me deu mais chances de sumir no mundo.. Pois o homem não sabia atrás de qual cachorro correr atrás. Se bem que estava mesmo era com raiva de mim.
Capítulo 7
O retorno à rua e o encontro com a Associação Protetora dos Animais
A vida nas ruas não era fácil, gente ruim que maltrata animais como diversão, cachorros criados para atacar até seus semelhantes, frio, fome, sede... Mas enfim, havia o bônus da liberdade. A gente aprende a se virar. Tem gente ruim, mas tem muita gente de bom coração que deixa um pratinho de comida, água para os animais de rua. Tem pessoas bondosas que recolhe um gatinho aqui, um cachorro ali. Pessoas que se preocupam com nós. E um dia um destes, já passados três anos deste que havia fugido da Zoonoses, alguns destes seres humanos de verdade me encontrou. Era de uma tal de associação protetora dos animais que recolhe animais abandonados e os leva para tratar e enviar para adoção. Mas bem diferente da Zoonoses da prefeitura aquele lugar gelado e frio na questão do relacionamento com a gente. Na Associação, fui bem tratada, recebi alem de comida e remédios, muito carinho.
Escrevi minhas memórias, para você saber que nós animais temos sentimentos. E para que quando você for adotar um animal de estimação, lembre-se que ele já viveu muitas aventuras. Talvez tenha sofrido como eu sofri, e esteja precisando de um lar com muito carinho e amor. Talvez você precise até se esforçar para ganhar sua confiança... Mas quando conseguir isso pode ter certeza... Você ganhará um amigo companheiro e fiel!
Hoje me chamo Liza, sou já bem velhinha, 56 anos na idade dos cachorros. O que dá 08 anos na idade dos seres humanos. Mas ainda posso brincar, dar carinho e ser boa companheira. E estou prontinha para ser adotada.
E ai?
Quer ser meu dono? Meu amigo?
Quer ser minha família?
FIM
Marcelo Bancalero